segunda-feira, 17 de junho de 2013

Não subestimem esses jovens

“Saímos da internet” dizia um dos tantos cartazes levados à última manifestação realizada em São Paulo contra o aumento das passagens, na quinta-feira. A frase respondeu em poucas palavras a uma provocação que se vê frequentemente nas redes sociais e, também, mostrou para toda sociedade a origem do ato e de uma série de mobilizações que vêm se propagando pelo mundo nos últimos anos.

O potencial de mobilização a partir da internet sempre foi colocado à prova. Primeiro pela ideia errônea de que seus usuários são, em sua maioria, abastados e mimados jovens burgueses que desconhecem os problemas e as deficiências que a sociedade enfrenta. Certo é que não só no Brasil, mas no mundo, o alcance da rede amplia-se a passos largos. De acordo com relatório publicado em outubro pela União Internacional de Telecomunicações (UIT), mais de um terço da população mundial está conectada à internet. No Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2011, o percentual de pessoas que utilizaram a internet passou de 20,9%, em 2005, para 46,5%, em 2011 – um crescimento vertiginoso da ordem de 21 mil novos acessos ao dia. A mesma pesquisa mostra que, em 2005, só 24,1% dos alunos da rede pública usavam a internet, esse número passou para 65,8%, em 2011.

A provocação para sair da internet sempre esteve colocada na medida em que esses jovens são diretamente relacionados à inércia de um grupo sem propósito e sem vontade política para sair às ruas por uma causa nobre. A lógica que prevalece é a de que não existe revolução que surja desse universo. Uma lógica cega ao que vem sendo sinalizado há anos. Surpreende-se quem está alheio a esse movimento.

Eles saíram, sim, da internet, mas não fizeram isso na semana passada. Em 2008, uma manifestação organizada pela internet reuniu nove mil pessoas em protestos realizados em frente a vários templos da cientologia em todo mundo. Um número muito acima da expectativa dos organizadores – integrantes do grupo de hacktivistas Anonymous. O grupo provava a capacidade de mobilizar atos além da rede e suas ações ganharam destaque e impacto em todo mundo. Para quem tiver interesse em conhecer melhor essa história e como os hacktivistas atuam desde então, inclusive com participação na Primavera Árabe, recomendo o documentário “We are legion”. Aqui, você assiste na íntegra.

Manifestantes em protesto contra a cientologia em Los Angeles
Foto: Vincent Diamante/Creative Commons
Sem partidarismos
No Brasil, a atuação do Anonymous e de outros grupos não tardou. No mesmo ano, ataques a sites reforçavam descontentamento com a corrupção. O grupo nunca pleiteou liderança e sempre coibiu manifestações partidárias. Essa não é uma realidade só no Brasil, mas também presente no Brasil. 

Não são as máscaras do Guy Fawkes nas manifestações pelo passe livre que mostram semelhança com essa nova forma de expressão, mas a própria característica dos atos – sem menção partidária pela maior parte do grupo e sem liderança. Desde a semana passada é discutida a participação de partidos políticos no movimento, mas, embora despontem bandeiras nas manifestações, a maioria dos participantes repudia essa relação. 

O quinto ato agendado para ocorrer em São Paulo está marcado para as 17h desta segunda-feira. Na página do evento no Facebook mais de 210 mil pessoas confirmaram presença na mobilização até a noite de domingo. Entre os debates promovidos pelo grupo, vários discutem a permanência de integrantes com bandeiras partidárias no ato e a maioria dos participantes dos fóruns critica partidarismos, assim como os atos de vandalismo e a violência. Uma das enquetes pergunta se os manifestantes devem levar bandeiras de partidos políticos – dos participantes, até a noite de domingo, 4.183 dizem não, 134, sim, e 2.469 são favoráveis às bandeiras do Brasil. A crítica do grupo se estende a qualquer outra bandeira que não seja a nacional.

Independentemente da adesão à ideologia Anonymous, os jovens presentes nas manifestações contra o aumento no valor das passagens em todo País estão longe de ser contra um ou outro partido no poder como muita gente tem pregado por aí. O que eles estão colocando em xeque não são os partidos políticos, mas a forma de se fazer política no Brasil. Há discordâncias, sem dúvida, entre os manifestantes, mas essa juventude não parece priorizar partidos, mas sim opções políticas. Afinal, não é de hoje que o mundo precisa rever seus modelos econômicos, políticos e sociais. Ou alguém ainda acredita que não haveria qualquer transformação a partir do alcance promovido pela internet? As manifestações e as opiniões propagadas a partir delas mostram que nem a polícia, nem a sociedade, sabe como lidar com essa juventude.

Não são 20 centavos
Se cada um dos 200 mil confirmados para manifestação de hoje, levar R$ 0,20, juntos terão R$ 40 mil, valor suficiente para comprar 104 cestas básicas em São Paulo. São só 20 centavos, mas é possível ver claramente a aplicação desse valor nesse caso. Já não se pode dizer o mesmo em relação às passagens de ônibus.

Segundo apuração do Estadão, em oito anos, o número de passageiros transportados pelo sistema municipal de transportes de São Paulo passou de 1,6 bilhão, em 2004, para 2,9 bilhões, em 2012. Ao passo que o número de coletivos reduziu no mesmo período, passando de 14,1 mil, em 2004, para 13,9 mil, no ano passado – com o detalhe de ter sido reduzido o número total de viagens feitas pelos ônibus. O valor arrecadado subiu e chegou a R$ 4,5 bilhões, em 2012, ante R$ 3,3 bilhões, em 2004. 

O metrô também vê crescer o número de passageiros na mesma proporção, segundo dados do próprio sistema. Em 2005, a rede transportava, nos dias úteis, 2,4 milhões de pessoas. Atualmente, a média está em 4,5 milhões de passageiros por dia. Diante desses números, 20 centavos não são só 20 centavos e não me parece bobagem contestar aumentos. Mas a luta não está restrita aos transportes. Voltando às discussões do grupo na internet, outra enquete sugere uma pauta com 10 reivindicações – as mais votadas: melhores salários para os professores, educação de qualidade, reforma tributária, mais saúde, não à PEC 37, fim do voto secreto no Congresso, contra a corrupção, mais segurança, ampla reforma política e diminuição do salário dos políticos. A vontade de opinar e participar dos rumos do País são latentes e é preciso que o poder público pense em formas de integrar mais a sociedade em suas discussões, de maneira séria e eficiente, sob pena de ver-se confrontado repetidamente à exaustão. Outra coisa importante a salientar, caso ainda não tenha sido percebido, é que esses jovens repudiam a corrupção - qualquer centavo destinado ao atendimento de interesses que não sejam os da sociedade ou ao enriquecimento ilícito pode ser, sim, a gota d'água. 

Não subestimem esses jovens, mesmo que uma minoria entre eles incorra no erro do engajamento político cego e outra parcela minoritária transforme em baderna a manifestação. Esses jovens querem e vão lutar por outros motivos. Como qualquer grupo, em qualquer período histórico, eles podem errar ao defender uma causa em detrimento de outra. Da mesma forma, correm o risco de tornarem-se alvo fácil de grupos (políticos ou não) oportunistas, mas eles estão agindo, ganhando voz e respeito. E a voz que se propaga na queixa deles amplifica as vozes de toda a sociedade. Não subestimem esses jovens que descobriram o poder que têm. 

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Para além da cultura de segregação



Intelectualidade, arte e erudição são gozo e liberdade, certo? Nem sempre. Por vezes, após aprofundarmos - e nos fascinarmos – em certas experiências filosóficas e culturais, encontramos um território frio, inóspito, hostil. Digo isso porque acredito que para cultivar verdadeiramente esses valores é necessário renunciar ao colo quase maternal da vulgaridade, de um modo de vida banal e de pretensões pequeno-burguesas. Quer dizer, se fica órfão e ainda se abraça a dor de melhor compreender as idiossincrasias da realidade. Esse fenômeno aconteceu comigo com a prática do jornalismo e as constantes imersões em estudos na área da literatura e psicologia.

O outro perigo de não fazer mais parte do senso comum é o de se emaranhar nas raias do ego. Erigir para si um trono de marfim inatingível às outras pessoas. Lemos mais, entendemos mais, selecionamos mais e...exigimos mais. Assim, não é qualquer companhia que satisfaz nossos anseios. O convívio pode ficar mais difícil, os prazeres se tornam mais solitários ou restritos a pequenos grupos e a atmosfera do pensamento alça voos mais altos. Quando tomamos consciência disso, surge logo um quê de melancolia e de julgamento. É parte da transição. As contrações do parto.

Frequentemente desligo minha atenção para papos de elevador, bancos, supermercados. Meu maior esforço nessas ocasiões é ser cortês e, na maioria das vezes, o faço sem sucesso. Não há espontaneidade. Procuro divertir-me com essa sensação de “lacuna” que fica entre o o “sentir” e o “agir”. Sei da necessidade em exercitar a gentileza com quem quer que seja e que não vou poder me relacionar sempre com jornalistas, letrados, artistas, gente da psicologia e autores. Mas não, eu não sou mais uma figura misantrópica que arrola pelas grandes cidades. Pelo contrário, acredito no ser humano, sou um sujeito sociável, de riso fácil e busco incessantemente a afeição das pessoas que me são caras. Além disso, gosto de rock, seriados de comédia e de cinemão hollywoodiano. E, para arrematar, se acompanharem algumas horas do meu dia, certamente me darão um flagra lendo matérias sobre Luana Piovani, Marimoon, Nicole Bahls, Geisy Arruda ou alguma outra subcelebridade. Mas, para compensar esses deslizes, pretendo ouvir mais jazz.
...

Da urbe em que escrevo este texto, predomina a cultura do trabalho, do capital, dos sobrenomes, dos MBAs, dos cargos em que se ocupam nas grandes corporações. Felizmente há alguns focos de resistência. Existem centros de cultura, algumas universidades, grupos de estudos literários, um bom cenário musical e a realização de saraus com certa frequência. Ilhotas isoladas. Nenhuma vanguarda capaz de impulsionar um movimento social e cultural renovador (a pós-modernidade faz seu melhor trottoir por aqui).

Num dos prazerosos encontros destas confrarias em que me insiro, fui testemunha de uma cena de arrogância dantesca. Em uma livraria-café, líamos passagens da obra-prima de um gênio da literatura brasileira. Uma das características do autor se constituía em impressionante verborragia. Quando chegamos ao momento da análise de um trecho deveras empolgante, o diálogo entre um estudante de letras e de um poeta muito reconhecido e pouco tato ganhou espaço na oportunidade e me deixou completamente aturdido:

- Parece uma locomotiva fora de controle! - exclamou de forma pueril o estudante, fazendo referência à intensidade da cena descrita pelo autor.

- Que forma senão essa para a literatura? - estremeceu o poeta, incisivo e impiedoso, dirigindo-se ao café da livraria para reverberar sua indignação (balançava a cabeça negativamente, agitava os braços. Por fim, deitou os olhos e a cabeça no balcão desolado com a suposta ignorância do estudante).

Penso que o rapaz da “locomotiva” estava dando mesmo os primeiros passos na prática da fruição artística. Mas da forma como aconteceu, com a austeridade e o preconceito exalado “poeta”, não houve estímulo algum para ele buscar leituras mais apuradas de qualquer obra literária.

O poder agregador, conciliatório e transformador do conhecimento só surge a partir do instante em que refletimos a direção edificante que daremos para essa nova força. E claro, quando aliamos esse exercício à humildade, demonstramos mais claramente as benesses de não ficar na poltrona discutindo os quadros do Fantástico.   

Pobres de nós

Crédito: Cris Watk/SXC
Houve um tempo em que vendedores de enciclopédias passavam de porta em porta oferecendo coleções de capa dura, geralmente com mais de uma dezena de exemplares. Eu era criança nessa época. Pegava na estante um daqueles livros, que eram grandes e pesados, sentava-me e começava a folheá-lo, sem um propósito definido. Apenas gostava de ir passando, página a página, pelos temas, lendo aqueles que me chamassem atenção. Isso foge um pouco do propósito desse texto, mas já que a lembrança insiste em martelar, vou registrá-la aqui. Tínhamos os cinco volumes da Enciclopédia Ego, com a qual me detinha por horas. O tema central era comportamento humano, muito instigante para criança curiosa que jamais lera ou ouvira coisas semelhantes sobre a sociedade.

Aquele era um tempo em que os jornais também eram fascinantes. Agora, penso se as enciclopédias e os jornais eram atraentes só para mim. O fato é que cresci nesse contexto. Para os trabalhos de escola, recorríamos às enciclopédias, aos jornais e às bibliotecas. Hoje, para mim, só as enciclopédias ficaram obsoletas. Continuo gostando muito de jornais e bibliotecas. Quem diria que um dia eu me tornaria uma jornalista e, melhor, atuando como repórter em um jornal impresso? Nem eu apostaria nisso. Aliás, ingressei nessa área sem ter planejado ou desejado esse objetivo por anos. Simplesmente, quando o momento chegou, optei pelo jornalismo, embora quase tivesse assumido a vaga no curso de Filosofia de uma universidade federal. O fato é que sinto-me satisfeita com a escolha que fiz. Mas que época estranha essa para ser repórter de jornal!

Agora, que a internet assume o papel das enciclopédias, e, muitas vezes, das bibliotecas, os jornais tentam encontrar espaço nesse novo momento. Os questionamentos sobre o fim do jornal impresso são constantes e a resposta nunca é definitiva, embora haja uma crença generalizada de que as perspectivas futuras não são as melhores. Será que o nosso dilema não seria outro? Qual é o papel que cabe ao jornal impresso atualmente? Será que ele pode oferecer algo diferente do que podemos encontrar na internet? Será que ele não pode habitar os dois espaços? Há quem ainda prefira ler o jornal no papel. Só é difícil prever se as gerações que estão aí, longe das enciclopédias e das bibliotecas, vão querer folhear um jornal no futuro.

Imagino que ontem todas as redações comentaram, mesmo que minimamente, o resultado de uma pesquisa sobre profissões feita por um site norte-americano especializado em empregos. Em uma relação de 200 profissões, classificadas das melhores para as piores, a de repórter de jornal impresso foi a última do ranking. Poxa, estamos em baixa mesmo! Pelo menos nos Estados Unidos. Nada contra qualquer profissão, mas higienista dental está em 6º lugar e oficial de liberdade condicional, em 27º - menciono essas porque me soaram estranhas mesmo.

Se esta é a realidade dos jornalistas de lá, aqui, as coisas não estão muito melhores. Diria até que estão piores, se forem consideradas apenas as condições de trabalho. Enquanto nos Estados Unidos os repórteres ganham U$ 36 mil por ano, os pisos para o mesmo cargo no Brasil inviabilizam que os profissionais daqui cheguem próximos desse valor. Se for considerado o piso de São Paulo (Capital) - R$ 2.076,00 -, um repórter consegue adquirir, em um ano, menos de R$ 25 mil. E se considerarmos que o Brasil é um dos países onde mais se mata jornalistas no exercício da profissão, acho que temos mais razão para chorar do que rir dessa situação.

Voltando a pesquisa americana, feita pela CareerCast.com, o consultor Paul Gillin disse que a profissão derradeira do ranking "perdeu seu brilho dramaticamente ao longo dos últimos cinco anos e deverá cair ainda mais até 2020", acrescentando que "o modelo de impressão não é sustentável" e que "provavelmente será extinto nos próximos dez anos".

Fazendo um contraponto com a realidade brasileira: no ano passado, segundo o Índice Verificador de Circulação (IVC), os jornais impressos atingiram recorde histórico de circulação no Brasil. A média diária foi superior a 4,5 milhões de exemplares. Parece que aqui, embora seja crescente o número de jornais saindo de circulação, há um aumento de consumo desse produto que contraria as perspectivas pessimistas. É preciso observar, no entanto, os rumos que esse crescimento, no Brasil, vai tomar. Se considerarmos que a previsão é de aumento de investimento publicitário em todos os meios de comunicação no País, neste ano - aumento estimado em quase 10% pela empresa Warc -, há chance para que os jornais se sustentem. De acordo com a mesma pesquisa da Warc, os jornais devem ter acréscimo de faturamento de 5%, que ainda é baixo se comparado com a internet, que deve ter faturamento 20,5% maior. São conjunturas, mas querem dizer algo. Fico mais curiosa em saber qual é o modelo de jornal que as pessoas desejam - talvez isso sinalize melhor os nossos rumos.

Retomo as lembranças. Vejo-me criança, fuçando jornais antigos e enciclopédias e sinto saudade. Saudade da curiosidade que me movia para todos os lados, já que tudo era um enigma. Saudade da satisfação e até da felicidade com aquelas leituras. Será que as crianças e os jovens de hoje sentem o mesmo com a internet?  

segunda-feira, 22 de abril de 2013

A imprensa por trás da opinião pública


Adquiri um novo hábito nos últimos anos. Diria que é quase um vício, dadas as tentativas frustradas de vencer o impulso que me leva, a cada notícia que leio na internet, ao campo dos comentários dos leitores. Eu dificilmente consigo ler qualquer matéria na internet sem dar uma conferida no que as pessoas estão dizendo sobre o assunto. Como jornalista, meu interesse é justificável, já que o meu trabalho é, ou teoricamente deveria ser, atender às demandas da sociedade por informações. Nesse sentido, penso que eu preciso estar atenta ao que os leitores pensam. Mais do que isso, vejo nesse hábito uma forma de estudar como as notícias são interpretadas pelas pessoas e como a imprensa tem fomentado o debate público sobre diversos temas. É um hábito que rende boas discussões, algum divertimento, em algumas situações, e preocupação, em outras.

De maneira geral, a crítica ao texto, muitas vezes pouco embasada, é quase uma certeza. Isso não é totalmente ruim. Eu, particularmente, vejo como uma forma de contribuição ao meu trabalho quando um comentário fundamentado aponta que usei algum termo incorreto ou que poderia ter abordado algum outro aspecto sobre o tema. Diferentemente do que se diz, estamos longe de sermos os donos da verdade. Muitas vezes, no entanto, essas críticas demonstram que alguns leitores têm verdadeiras restrições a alguns veículos – esse é um aspecto que vale ser estudado mais profundamente, porque há uma inclinação à crítica partidária, ou contrária aos veículos de comunicação considerados de “direita” ou contrária aos considerados de “esquerda”. Outro ponto evidente é a dificuldade de compreensão do texto. Já li inúmeros comentários que denotavam que o conteúdo não foi compreendido. Há aí a nítida dificuldade educacional que o País ainda precisa vencer. Para demonstrar que esse problema não atinge apenas pessoas sem estudo, deixo o dado da pesquisa realizada no ano passado pelo Instituto Paulo Montenegro que indica que 38% dos estudantes universitários não sabem interpretar textos.

Vejo a possibilidade de interação com o leitor como um avanço promovido pela internet, capaz de expor outros meandros mais conflituosos dessa relação entre a imprensa e a sociedade. Bom, é desnecessário mencionar que essa ferramenta também funciona como um termômetro para os veículos de comunicação identificarem os assuntos que estão atraindo a atenção do público. Mas, extrapolando essa esfera mais rasa do tema, quero me deter à questão da influência que a imprensa exerce sobre o público. Apenas para citar um exemplo, recorro a uma matéria divulgada pelo site do jornal Estado de S.Paulo nesta segunda-feira (22/4) e replicada na página do jornal no Facebook. Com o título “SUS reduz de 21 para 18 anos idade para troca de sexo”, no site, e a seguinte descrição na rede social: “Governo reduz de 21 para 18 anos idade mínima para troca de sexo no SUS: portaria também libera aos 16 anos início do tratamento hormonal e psicológico de transexuais - até agora, idade mínima era de 18”, o assunto chamou minha atenção de cara. Em 20 minutos, a postagem no Facebook gerou mais de 150 comentários, mais de 200 curtidas e 188 compartilhamentos. Antes de ler os comentários, eu já sabia o que as pessoas estavam comentando.

Ficou muito claro que a forma como texto foi colocado geraria parâmetros para outro debate, que não tem nada a ver com sexualidade, ganhar espaço. Nas semanas em que se discute a redução da maioridade penal, destacar que o governo diminuiu a idade para realização da cirurgia para troca de sexo é levantar a bola sobre as capacidades de escolhas e responsabilizações atribuídas a um adolescente. Não precisei clicar no ícone dos comentários para prever a repercussão, mas ao fazê-lo constatei, sem espanto, que estava certa. A maioria esmagadora dos leitores comparou a decisão sobre a cirurgia com o tema penal, esquecendo que a mudança de sexo envolve impactos inegáveis na vida desses jovens. Os leitores do Estadão não deram muita atenção a isso e o próprio jornal não teve a preocupação em abordar a importância do assunto de forma mais abrangente. Bastava mencionar que a Organização Mundial de Saúde reconhece os conflitos de identificação sexual como um dos fatores de risco para suicídio – cometidos, nesse caso, principalmente, por crianças e adolescentes.

Voltando aos comentários, um dos leitores questionou: “E a maioridade penal?” – uma pergunta sem propósito algum, mas que foi curtida por 71 pessoas até o momento em que escrevo. A sociedade está profundamente envolvida com a questão da maioridade penal, com uma forte tendência a optar pela redução, um contexto que faz com que a matéria abra caminho para ridicularização da luta dos transgêneros. Alguns leitores consideraram que a medida do SUS é irrelevante.

Insisto em dizer que a nossa profissão precisa ter uma certa sensibilidade ao tratar de alguns assuntos. Esse, por exemplo, é um dos que requer escolhas mais apropriadas. O título e o primeiro parágrafo da matéria (lead) destacam de uma maneira tão enfática a questão da idade, que o propósito da medida fica em segundo plano. Sinto que faltou responder uma das perguntas que nos obrigamos a responder no lead: por quê? – afinal de contas, a decisão em diminuir a idade para realização do procedimento cirúrgico e do tratamento tem alguma justificativa.

Seria coerente destacar o histórico que envolve a decisão ao invés de evidenciar a polêmica. Talvez assim os leitores compreendessem melhor que se trata de um grupo da sociedade que tem direitos como qualquer outro. E mais, será que o título optaria em destacar a questão da redução da idade se não estivéssemos em período de discussão da maioridade penal? Penso que uma chamada natural para esse assunto seria: “SUS realizará cirurgia para troca de sexo a partir dos 18 anos”.

A palavra “reduz” – usada no título, no lead e no Facebook – teve um peso muito maior do que o assunto. Não vou entrar no mérito se foi algo pensado propositalmente, embora eu tenha minhas convicções, mas parece que essa palavra foi fundamental para influenciar a manifestação dos leitores. A opção do jornal acabou por fomentar críticas infundadas e o preconceito, que já aparece em alguns comentários. Em um dos comentários, um leitor disse que o “seu dinheiro” será usado para “amputar órgãos e pagar tratamento hormonal”, como se os transgêneros também não pagassem impostos.

A proporção que uma palavra alcança é imensurável. Nesse caso, ela se delineia na intolerância das pessoas e reflete na vida daqueles que podem até conseguir solucionar a questão sexual com a cirurgia, mas que ainda devem sofrer com o preconceito, especialmente se a imprensa continuar “reduzindo” temas importantes a debates fora de propósito.